quarta-feira, 15 de julho de 2009

Cada vez mais indivíduo - Albert Camus

Mandar é respirar, não é desta opinião? E até os mais deserdados chegam a respirar. O último na escala social tem ainda o cônjuge ou o filho. Se é celibatário, um cão. O essencial, em resumo, é uma pessoa poder zangar-se sem que outrem tenha o direito de responder. «Ao pai não se responde», conhece a fórmula? Em certo sentido, ela é singular. A quem se responderia neste mundo senão a quem se ama? Por outro lado, ela é convincente. É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda a razão pode opor-se outra: nunca mais se acabava. A força, pelo contrário, resolve tudo. Levou tempo, mas conseguimos compreendê-lo. Por exemplo, deve tê-lo notado, a nossa velha Europa filosofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos tempos ingénuos: «Eu penso assim. Quais são as suas objecções?» Tornámo-nos lúcidos. Substituímos o diálogo pelo comunicado.

Albert Camus, in A Queda

quarta-feira, 8 de julho de 2009

A intimidade da presença - Vergílio Ferreira


"Vegetação seca no recorte das dunas, vejo-a, lembra-me a brisa de sal. Um barco passa quase à borda da água - será o de há pouco? um petroleiro talvez. Pesado, vagaroso, um friso de espuma ao corte da proa. Alegria marítima, o sol rasgado de horizonte a horizonte, espaço absoluto. E o azul vivo na grande pedra do mar. É o que sobretudo me comove, esta verdade original das coisas. Frescura intacta e nula, força íntima de ser - e o vazio da sua justificação. O mundo é vivo e alegre, luz virgem, e só eu o sei, acidental, aqui, um instante lúcido. O ser não se justifica, apenas é - sê apenas. Que a tua complicação e o jogo encravado e o erro imprevisível que só é previsível em marcha atrás,..."

Vergílio Ferreira in Nítido Nulo

Evidência paradigmática - Vergílio Ferreira


"Porque na realidade, não estou à espera de nada. A morte, decerto. Mas a morte não se espera - acontece. Como numa doença incurável, deve ser assim. Entre a condenação e a execução, nos breves minutos que sejam deve ser parecida. No mais pequeno intervalo cabe a vida toda e dentro da vida é-se eterno, não estou à espera de nada. Roça absoluta de si, o além dela é não, agora não. Pára, vazio de tudo, na dispersão ausente do teu olhar distraído. Na adstringente secura dos cigarros ininterruptos, do salgado dos tremoços e da maresia, na automação circular da sede que renasce da sede que se calou, como o triunfo que se esquece na razão de triunfar e que nunca triunfa, se bebesses? E um instante a paz regressa, intervalada no esquecimento do desassossego, a seguir."

Vergílio Ferreira in Nítino Nulo