terça-feira, 27 de outubro de 2009

Passo em falso - Vergílio Ferreira


“...Se tu soubesses como é difícil. Ter a verdade inteira nas mãos e ela não ser. Saber que é a verdade da vida e a vida dizer não. Como a mulher que nos deseja e nos recusa, nunca soube porquê – para nos irritar? Para se valorizar ou adiar o prazer. Pago ao graxa, atiro a moeda pelo ar para entrar no seu jogo, ele apara-a, mete-a ao bolso, afasta-se com o caixote sem dizer palavra. Saio à rua, vou pela cidade a passos vãos, à procura de entender. É o fim da tarde de um dia de Inverno. Reconheço-o nos pássaros guizalhando pelas árvores, uma melancolia retraída que no Verão não há. Vera mora um pouco longe, mas tenho tempo, apetece-me andar. É a hora viva do tráfego, as luzes acendem-se pelo ar, as vitrinas iluminam-se – e se soubesses como é difícil. Porque um secreto mecanismo tudo subverteu. Não estava lá o que eu disse, não estava mesmo no programa de Teófilo – estava onde? Como bichos terrestres, os olhos acesos, passam os carros, levam a cidade toda na sua ronda – estava onde?”

Vergílio Ferreira in Nítido Nulo

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